O presidente da China, Xi Jinping, vem ao Brasil em novembro e deve se encontrar com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A viagem do autocrata chinês foi confirmada pela Gazeta do Povo com fontes ligadas ao governo e acontece próximo à Cúpula do G20, bloco do qual a China faz parte e o Brasil está presidindo neste ano. Lula tem buscado maior aproximação com Pequim desde que retornou à Presidência e, durante sua passagem pelo Brasil, o chinês espera destravar a adesão do país à Nova Rota da Seda.
O líder e autocrata chinês tem buscado a adesão de países da África e da América Latina ao “Belt and Road”, também conhecido como Nova Rota da Seda, uma estratégia de soft power que mira países em desenvolvimento. O projeto chinês financia obras de infraestrutura, por meio da construção de portos e rodovias, com a intenção de facilitar o comércio da China com esses países. A estratégia, porém, não tem apenas fins comerciais e pode ser usada como uma bandeira política para Pequim.
Mas o projeto é controverso. Países que aderem à iniciativa também ficam “reféns” da dívida com o gigante asiático. Foi o caso de um vizinho do Brasil, o Suriname, que precisou de socorro do Fundo Monetário Internacional para se libertar de uma dívida impagável com Pequim. E o problema não afeta apenas países pequenos. Paquistão, Angola, Etiópia, Quênia e Sri Lanka adiquiriram dívidas bilionárias com a China, grande parte delas resultado de obras da Rota da Seda.
As obras também ocorrem por meio do fechamento de contratos ao estilo “pacote fechado”, no qual o financiamento só é concedido se a obra usar mão de obra e matérias primas chinesas. Esse formato, em tese, desrespeita a lei de licitações que permite a contratação de obras públicas no Brasil. Corrupção em contratos e a falta de compromisso com exigências ambientais também foram problemas encontrados nas licitações da Belt and Road com alguns países, especialmente na África.
Enfrentando o que os especialistas chamam de Guerra Fria 2.0 contra os Estados Unidos, a China tem apostado na aproximação com nações em desenvolvimento para se fortalecer contra a hegemonia norte-americana. Além do retorno comercial — a China já é o maior parceiro econômico da América Latina e da África — esses investimentos e empréstimos milionários também têm retornado como apoio político para Pequim.
“Essa é uma iniciativa que tenta abrir mercados, abrir negócios e aumentar a influência chinesa através de investimento. É realmente uma iniciativa de soft power chinês que tenta se aproveitar de lacunas e de falhas de mercado em países em desenvolvimento que, muitas vezes, não têm espaço para investimento, e a China entra com o seu capital [financeiro] e assim consegue capital político, além do próprio retorno financeiro em mercados abertos”, avalia Vito Villar, consultor de política internacional da BMJ Consultores Associados.
Em sua passagem por Brasília, Xi Jinping deve negociar a adesão do Brasil ao Belt and Road. Esse programa é um dos três principais eixos da política externa chinesa ao lado da Iniciativa de Segurança Global e da Iniciativa de Desenvolvimento Global.
Analistas chineses dizem que o foco do programa Iniciativa de Segurança Global é evitar a intervenção internacional em assuntos internos de países. Já especialistas do Ocidente avaliam que a o programa visa minar o sistema de alianças que une as democracias liberais do planeta promovendo uma arquitetura de segurança global baseada na visão chinesa da geopolítica. O apoio à invasão da Rússia pela China, por exemplo, é justificado por essa iniciativa como uma suposta defesa de Moscou contra a expansão da Otan (aliança militar ocidental) no leste europeu.
O terceiro programa da China, a Iniciativa de Desenvolvimento Global, é um esforço de financiamento de projetos de combate à fome, à pobreza e à mudança climática feita com o intermédio de agências da ONU.
Villar explica que há muitos anos a China tenta incorporar o Brasil ao projeto da Nova Rota da Seda pela representatividade que o país possui na América Latina. “A abertura de um mercado de mais 200 milhões de pessoas, no principal país e principal economia da América Latina, e uma das maiores do mundo, é atrativo demais para China”, salienta Villar. Atualmente, a China já investe no Brasil por meio de empresas privadas ou estatais. A Belt and Road seria uma forma de elevar esses investimentos de uma forma favorável para a China.
O especialista pontua ainda que Xi Jinping tem a esperança de que o apoio do Brasil à sua iniciativa possa destravar um antigo desejo chinês: a abertura de uma rota marítima e portuária que ligue o oceano Atlântico ao oceano Pacífico — o que facilitaria a rota comercial da China com os países latino-americanos. O projeto consistiria na construção de uma rota saindo do Porto de Santos, atravessando todo o Brasil e saindo por Lima, capital do Peru. A rota poderia ser uma alternativa ao Canal do Panamá.
“Com a nova rota, não teria de se atravessar o Canal do Panamá que até hoje tem um controle bastante forte dos Estados Unidos — rota essa que, inclusive, nos últimos anos, tem se falado em fechar por conta de secas na região [do Panamá]. É um investimento antigo e de interesse dos chineses, mas também de interesse da América do Sul que busca uma ligação férrea e portuária nesse sentido. Seria interessante para a China ter o suporte do Brasil”, explica Villar.
Durante a visita do presidente Lula à China no último ano, a adesão do Brasil ao projeto chegou a ser discutida de forma oficial entre os governos. O tema, porém, divide a diplomacia brasileira e é visto com cautela por especialistas políticos. Além do formato de financimanto, há a preocuocupação de que um acordo nessa linha pode trazer danos na relação com Washington. O embaixador e secretário de Ásia e Pacífico do Itamaraty, Eduardo Saboia, chegou a indicar desinteresse do Brasil em aderir à iniciativa chinesa no ano passado.
“Com relação ao Belt and Road, eu entendo que o Brasil já tem um arcabouço muito sólido que é a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível (Cosban). Essa parceria, essa estrutura toda, tem permitido alcançar objetivos que são infraestrutura, desenvolvimento de comércio e investimentos. Estão em sintonia com os objetivos da iniciativa Cinturão e Rota. Ela não necessariamente tem um valor agregado nesse momento”, disse.
Por outro lado, o ex-chanceler e assessor para assuntos especiais da Presidência, Celso Amorim, chegou a dizer em entrevista ao jornal Valor Econômico, que não via problema na adesão do Brasil ao projeto. Em entrevista ao jornal chinês Global Times, o ex-chanceler afirmou que o Brasil estava “aberto” a estudar essa adesão. Apesar de já não possuir mais o cargo de ministro das Relações Exteriores, Amorim é tido como um dos principais influenciadores da política externa de Lula.
A aproximação política entre Brasil e China
Na avaliação do professor Elton Gomes, do departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI), a visita também tem o intuito de aprofundar a aproximação política e ideológica entre o Lula e China. “A China em um olhar particularmente interessado nas grandes economias emergentes, como o Brasil, a Índia, África do Sul, Egito, Argentina… E nesse momento em que governa o Brasil um grupo político simpático ideologicamente ao Partido Comunista da China (PCCh), essa visita vai no sentido de aprofundar esse perfil”, avalia.
O professor avalia que Xi Jinping pode tentar apostar na aproximação ideológica com Lula para destravar a entrada do Brasil na Nova Rota da Seda. Nos últimos meses, membros do PCCh vieram ao Brasil e se reuniram com líderes do Partido dos Trabalhadores. Elton Gomes chama atenção ainda para os riscos que essa aproximação podem ter, já que a China é considerada uma autocracia.
Uma delegação do PT também fez uma visita à China em 2023. No âmbito dessas trocas, os partidos assinaram acordos de cooperação para aprofundamento das relações. O fato da China ser uma autocracia governada por um único partido chama atenção sobre o interesse do PT em querer aprofundar a troca estratégica com país, dado que as acusações feitas contra Xi Jinping vão em desencontro com a defesa da democracia e liberdade de expressão que a legenda de Lula alega defender.
Apesar do impasse sobre a Nova Rota da Seda, o governo do petista tem dado cada vez mais indícios dessa aproximação política com a China. Nesta semana, Celso Amorim viajou até Pequim para assinar um acordo com o regime chinês para uma solução da guerra na Europa entre Rússia e Ucrânia. A viagem aconteceu pouco depois da confirmação de que Lula não vai participar da Cúpula da Paz para a Ucrânia, na Suíça, em junho. A China tem apoiado Vladimir Putin no conflito.
A busca da China por sua expansão comercial e política
Há mais de dez anos no poder, o governo autocrata de Xi Jinping é acusado de crimes contra os direitos humanos, de restringir o acesso da população à internet e manipular as notícias veiculadas na imprensa local. O ditador ainda é acusado de perseguir e enviar minorias religiosas para campos de trabalhos forçados. Os crimes cometidos pelo Partido Comunista Chinês geraram ao país uma série de sanções e embargos comerciais pelos Estados Unidos e por países da União Europeia.
Desde o “boicote” norte-americano à China, o país entrou em uma espécie de “Guerra Fria 2.0” contra os Estados Unidos. Atualmente, o gigante asiático rivaliza com os Estados Unidos na liderança da economia mundial. Enquanto os dois lados se sancionam e enfrentam uma disputa geopolítica, a China passou a buscar apoio através de investimentos em países do chamado Sul Global.
Foi então que o país deu início a um agressivo projeto em sua política externa que ficou conhecido como “Nova Rota da Seda”. As nações africanas e latino-americanas foram o alvo da estratégia chinesa. Atualmente, Pequim já é o principal parceiro comercial da maioria dos países nessas regiões. De acordo com o próprio governo chinês, cerca de US$ 100 bilhões teriam sido investidos somente na América Latina na última década.
Pequim quer apoio político em troca de investimentos vultuosos
Os investimentos chineses na esfera da Nova Rota da Seda não têm apenas um viés comercial. Os países que aderem à iniciativa também são pressionados para apoiar politicamente a China em fóruns internacionais e no discurso anti-americanista. Nos últimos meses, essa influência chinesa tem ficado clara em discussões sobre a desdolarização e a guerra na Europa entre Rússia e Ucrânia.
Enquanto os países do Ocidente levantaram uma série de embargos contra a Rússia, fazendo do país o mais sancionado do mundo, Pequim se transformou no maior aliado de Moscou desde o início da guerra. Com o aumento do comércio entre as duas nações, Xi Jinping e Vladimir Putin mantiveram encontros e uma aproximação política nos últimos meses.
Esse apoio da China a Moscou também se estendeu aos países que estão na esfera da influência chinesa. Enquanto os países do G7 e da União Europeia adotam uma postura clara de condenação à Rússia pela invasão que fez contra a Ucrânia, nações africanas e latino-americanas têm evitado se posicionar sobre o conflito e algumas já declararam apoio a Putin.
Tal situação tem deixado o cenário mundial em um contexto de extrema polarização. O presidente Lula já fez declarações em aceno à China e tem adotado discursos de antiamericanismo, como o uso o fim do dólar para transações comerciais. A adesão do Brasil à Nova Rota da Seda pode estremecer a relação bilateral com os Estados Unidos que sempre foi parceiro político, estratégico e militar do governo brasileiro.
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